Arte feita pela equipe Laroyê - imagem de Pedro Prado Insta: @pradop
Por: Núbia Correa; Milena Rabelo; Sarah Morais - graduandas em Pedagogia e Membras do Grupo de Pesquisa Laroyê - Culturas Infantis e Pedagogias Descolonizadoras
[...] 1% a menos humano por dia
E dias? Já vivi mais de cem [...]
"Essa conta aí é de todo mundo!"
Vocês também vão pagar a conta [...]
Xapralá - Djonga
Em frente a TV, milhões de uns se concentram enquanto o Brasil perpassa por uma realidade onde nem a NETFLIX poderia fazer tamanho desastre em ficção. Uma tragédia que não é nenhuma obra cinematográfica, mas que as pessoas reagem tal como ir ao cinema. Anestesiados ou sádicos? O filme de terror que virou viver no país, segue com o roteiro básico hollywoodiano: morre o preto, o pobre, a mulher… E a população permanece sentada no conforto dos seus apartamentos e casas de condomínio sem nunca pisar em um espaço como a favela para conversar, para apreender, para sentir… E, se saem de dentro do apê, não é pra acolher: é para exterminar. Mas, deixa estar… Deixa… não foi em Minas, muito menos em SP… A vida de um “favelado” vale menos para você?
A justificativa dos “justos cidadãos de bem” é a de que havia tráfico, drogas e aliciamento de crianças. Foi pra proteger as crianças! Foi sim! Proteger elas da esperança de pensar que seus corpos e direitos serão providos e protegidos pelo Estado. A polícia deu o recado: não vai ter lei, constituição ou qualquer tratado internacional que nos impeça. E pode começar a pedir e implorar para encontrar o corpo do filho sob a mira de um fuzil e se sair viva, agradeça a gentileza do tal cidadão de bem. “Experimenta, nascer preto e pobre na comunidade”, “o que rola com preto e pobre NÃO APARECE NA TV” e, quando aparece, aparece em que vies? Com discurso policial? Alimentando o sadismo de uma parcela nacional que naturaliza e desumaniza a morte do preto todos os dias e ainda diz que se pudesse faria o mesmo, porque ali só tem bandido, só tem ladrão, que em 2022 é messias de fuzil na mão.
E ora, se Djonga está com a razão e ficamos 1% a menos humanos por dia, em uma sociedade que tentou exterminar os pretos do país em um projeto higienista de 100 anos - que, à propósito, falhou -, ao viver mais de 100 dias nesse país que opera a necropolítica nas mais variadas vertentes, atravessar os corpos de bebês, crianças, jovens, adultos e idosos é só uma questão de tempo. Na bala, na fome, na desinformação, na humilhação… quantas formas diferentes podemos citar que o Estado tenta retirar a vida de nossos corpos? Em nome de um projeto de “segurança nacional”, o governo promove o assassinato dos corpos pretos e favelados em todo Brasil. Desta vez, na comunidade de Jacarezinho, no Rio de Janeiro, uma ação ilegal das polícias civil e militar, resultou em chacina. Até o momento, confirmaram-se 25 mortos, somado a violência contra os moradores, invasão de casas, execuções dentro de salas, de áreas de serviço, de quartos de crianças e nas ruas.
Este projeto de morte, tem como justificativa a “guerra às drogas”, que de guerra não tem nada, pois como o advogado Joel Luiz Costa disse em suas redes sociais, para ser uma guerra ambos os lados precisam se opor, no entanto, quando só um lado morre e o outro mata, o nome é outro: massacre. As drogas e o armamento de sujeitos na favela são usados como justificativa ao extermínio apenas para aqueles com a pele alvo e com um CEP à margem, pois quando se trata da pele alva com um CEP central, a conduta é outra. Em 2019 duas grandes apreensões foram feitas no Brasil: a primeira, em Janeiro, aconteceu na Zona Norte do Rio de Janeiro, no qual 117 fuzis foram apreendidos dentro de um condomínio e um dos envolvidos no crime foi Ronnie Lessa, assassino de Marielle Franco. A operação policial foi silenciosa, não houve tiros, mortes, invasões de casas ou violência contra os moradores, pois dessa vez não se tratava de preto ou de favelado. A segunda foi em Junho, quando um militar foi preso com 39 kg de cocaína no avião da FAB (Força Aérea Brasileira), o caso envolveu drogas, forças armadas, governo, no entanto, não envolveu preto e/ou favelado, portanto, não houve mortes.
É possível notar, nesse sentido, que a violência do estado não é para garantir a segurança pública, acabar com o tráfico ou qualquer outra justificativa paradoxal. A violência é, na verdade, a forma perversa de acabar com aqueles e aquelas cujos corpos são desumanizados, e o ápice desta desumanização e deslegitimação se dá no planejamento e nas ações intencionais para ocasionar suas mortes.
Certas vidas serão altamente protegidas, e a anulação de suas reivindicações à inviolabilidade será suficiente para mobilizar as forças de guerra. Outras vidas não encontrarão um suporte tão rápido e feroz e nem sequer se qualificarão como “passíveis de ser enlutadas”. (BUTLER, 2020, p. 52)
A guerra” não é contra as drogas, é contra filhos e filhas pretos e pretas, é contra o pobre, é contra a favela. Piedade? De marginal favelado não! Indiferença no olhar daquele que mata e submete o entorno a nove horas de terror, enquanto vinte e cinco mães suplicam: “Eu quero meu filho!”, esses filhos que foram tirados à força de suas mães sempre souberam que não valiam nada, pois tudo que viam no mundo ao seu redor comprova isso. O Estado possui sua infraestrutura legitimada para executar seus alvos. E nós? Nós “somos todos alvos!”, como canta Rashid, "o azar é daquele que, assim como eu, se encaixa no estereótipo". As políticas públicas exercidas nas favelas são opressão, tiro e violência. Ruas cobertas de sangue, descaso de corpos negros expostos na rua, invasões de casas, execução de pessoas rendidas e mães procurando seus filhos desoladas? Isso não é segurança pública, é necropolítica! O genocídio que foi implantado em 1500 só se agrava.
Os anos de 2020 e 2021 ficarão marcados na história, pelo estabelecimento da Pandemia de COVID-19, uma infecção respiratória aguda causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que tem alto nível de mortalidade e elevada transmissibilidade, e que está assolando o mundo. Enquanto mais de 90 mil pessoas morreram vítimas do coronavírus só no Estado de São Paulo, desde o início da pandemia, as mortes por “intervenção de agente do Estado” no Rio de Janeiro, já somam 453 no primeiro trimestre de 2021 e 157 em março. Em comparação ao ano de 2020, o indicador registrou um aumento de 4% em relação ao apurado no ano e de 37% em relação a março de 2020, mostrando que além de ter um vírus como seu predador, a periferia enfrenta sem trégua o extermínio policial. Quantos mais vão morrer?
Durante a pandemia, o Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu operações em favelas do Estado do Rio de Janeiro, só estão autorizadas em "hipóteses absolutamente excepcionais''. Portanto, as operações deveriam ser restritas, informadas e acompanhadas pelo Ministério Público. Logo, o que ocorreu na manhã de 06 de maio de 2021 foi uma disparidade. Divergente da determinação do STF, a mão armada da polícia continua matando. E quem será responsabilizado por isso? Quem será punido? Ninguém. A polícia tem licença pra matar: negro e favelado! Enquanto a impunidade para a violência desmedida dos policiais seguir sendo uma regra, o derramamento de sangue continuará e os moradores das favelas continuarão vivenciando o terror devido às intervenções policiais, que causam mortes e exterminam direitos.
Mortos pela fome, pelo vírus e pela bala, assassinados todos os dias de formas diferentes por causa dessa atrocidade instaurada pela colonialidade do poder, por causa dessa política de poder e de morte. No momento em que o Estado aponta o revólver para nós como o alvo, atira e mata, ele não está nos protegendo. A cada tiro que assassina um filho seu, o Brasil falece um pouco também. E quem acolhe as mães das vítimas dessa Necropolítica promovida pelo Estado? Quem tem piedade daqueles que nascem para uma vida de morte viver? Tudo acaba em sofrimento, grito, choro e solidão. Não há tempo para que a mente possa entender a perda que o coração já sente. No momento em que um filho da favela morre, nasce uma mãe que não tem direito ao luto pois é levada a transformá-lo em luta, diante de uma dor que é tão potente que a consome aos poucos.
Referências
BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Autêntica Business, 1. ed.; 1. reimp.; Belo Horizonte, 2020.
DJONGA. Nós. Xapralá. MDN Beatz. 2021. 3:48 min.
FERREIRA, Bia. Cota não é Esmola - Ao vivo. 2018. 7:16 min.
ISP - INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Estado registra queda de 16% nos homicídios dolosos em março. Notícias, Rio de Janeiro, abr. 2021. Disponível em: http://www.isp.rj.gov.br/Noticias.asp?ident=460. Acesso em: 7 maio 2021.
TEIXEIRA, Patrícia; FREIRE, Felipe; LEITÃO, Leslie; MARTINS, Marcos Antônio; COELHO, Henrique. Polícia encontra 117 fuzis M-16 incompletos na casa de amigo do suspeito de atirar em Marielle e Anderson Gomes. G1 RJ, [S. l.], 12 mar. 2019. Disponível em: http://bit.ly/117-fuzis. Acesso em: 7 maio 2021.
RASHID. Estereótipo. Crise. Foco na Missão. 2018. 4:47 min.
ROSSI, Marina. 39 quilos de cocaína constrangem o Governo Bolsonaro. EL PAÍS, [S. l.], p. 0-0, 27 jun. 2019. Disponível em: http://bit.ly/cocaina-fab. Acesso em: 7 maio 2021.
Tenho orgulho dessas mulheres