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A desigualdade de riscos em meio ao apocalipse ambiental



Não é de hoje que nós sabemos que a espécie humana vem construindo ao longo de sua trajetória, uma guerra não correspondida com a Natureza. Guiada pelo argumento do desenvolvimento econômico e da evolução científica, a humanidade “brinca de Deus”, querendo controlar o incontrolável por meio da destruição. Deste ciclo surge uma novidade, o Antropoceno1, que é apresentado como um novo período geológico, que tem em sua principal característica a forte influência humana na composição química da Terra.

O fruto que estamos colhendo do Antropoceno está apodrecido, nele encontraremos o aumento de catástrofes, doenças, contaminações de nossos: ares, alimentos e águas e outras resultantes geradas pelo enfraquecimento dos ecossistemas terrestres. Um exemplo de como as ações antrópicas fizeram com que alcançássemos um desequilíbrio planetário está na pandemia da Covid-19, que coroa séculos de uma hegemonia cultural, realizada por povos que se desenvolveram pautados na ideia de progresso, conceito este que foi chave para a ampliação na devastação ambiental ao longo da história. A partir da atual situação pudemos ver que o progresso não fez com que caminhássemos para uma sociedade mais saudável, as destruições que esse conceito carrega consigo foram justamente as que provocaram essa doença, que é classificada como uma zoonose2.


Por meio do caso da própria Covid-19, podemos pensar que por mais que os riscos de contaminação do vírus estejam presentes para os diversos grupos sociais, existem alguns grupos que se tornam mais vulneráveis devido às impossibilidades de isolamento social, faltas de atendimento de um serviço de saúde adequado e uma série

de direitos que lhes são impedidos. Fazendo um paralelo, os riscos socioambientais trabalham com uma lógica muito parecida com os da Covid-19, só que neste caso a vulnerabilidade se apresenta por meio de situações como: contaminação de águas e alimentos, maior exposição aos riscos da criminalidade e das devastações ambientais e falta de acesso a esgoto com tratamento regularizado.


Uma grande distorção que geralmente ocorre em nosso horizonte está nas falas de parte considerável da elite mundial (representada pelo empresariado dominante dos mercados internacionais e representantes políticos) que buscam naturalizar a miséria e a falta de acesso a bens para os povos mais vulnerabilizados. Encontramos tal discurso quando se trata, por exemplo, o acesso à água potável como um privilégio a se conquistar, quando na verdade, sabemos que ela está no campo dos direitos universais. A partir de tal situação, vemos que há uma diferença na forma de tratamento entre as pessoas, como se para alguns a ideia de direito social não passasse de uma ficção escrita em papéis incompreensíveis. Para literalmente ilustrar essas diferenças de possibilidades que foram criadas às classes sociais, etnias e perspectivas culturais, Boaventura de Souza Santos (2009) desenvolveu o conceito linha abissal:


O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num

sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis

fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através

de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos:

o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘ do outro lado da linha’. A

divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece enquanto realidade, torna

se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. (p.23)


A descrição realizada pelo autor nos mostra exatamente o que é uma situação de marginalização, este é um processo no qual escolhem-se determinados indivíduos ou grupos coletivos para serem taxados como “objetos de preconceito” pelo resto do corpo social. Um exemplo preciso sobre como a divisão social realizada pela linha abissal é nutrida por um viés preconceituoso está na ascensão de Donald Trump na penúltima eleição presidencial norteamericana, momento este que o ainda presidenciável cresceu nas pesquisas por meio de promessas que afirmavam que ele pretendia ampliar a distância entre os dois lados do muro que divide os Estados Unidos (‘este lado da linha’) com o México (‘outro lado da linha’). Além dessa promessa, o candidato seguiu a sua campanha fazendo alusão aos mexicanos (e a diversos nativos da América Latina) como seres que estavam “roubando direitos” dos estadunidenses, os “verdadeiros americanos”.


Partindo da concepção de que a linha abissal é um forte meio para a exclusão e retirada de direitos de determinados povos, podemos afirmar que ela é um recurso fortalecedor do racismo, que também se expressa dentro das dinâmicas ambientais. Um dos casos mais recorrentes é de quando há o abandono estatal para com as populações que vivem em condições de extrema vulnerabilidade, no sentido de estarem mais expostas aos riscos que um meio ambiente desequilibrado pode causar. O termo que identifica essa situação se chama Racismo Ambiental, que segundo Herculano (2008) pode ser representado por:


O conceito diz respeito às injustiças sociais e ambientais que recaem de

forma desproporcional sobre etnias vulnerabilizadas. (...) Diz respeito a um

tipo de desigualdade e de injustiça ambiental muito específico: o que recai

sobre suas etnias, bem como sobre todo grupo de populações ditas

tradicionais – ribeirinhos, extrativistas, geraizeiros, pescadores, pantaneiros,

caiçaras, vazanteiros, ciganos, pomeranos, comunidades de terreiro, faxinais,

quilombolas etc. (p.16)


A história do Racismo Ambiental surge na década de 1970, nos Estados Unidos, mais precisamente no estado de Nova Iorque, ela veio por meio de manifestações das comunidades negras e latinas, que realizaram uma luta pautada na busca por direitos a uma qualidade de vida mais digna, e claro, o meio ambiente e os direitos aos bens universais também estavam elencados a essa noção de qualidade de vida.


Uma das principais marcas da teoria do Racismo Ambiental está em evidenciar que quem comete a ação danosa ao meio ambiente não é o primeiro a pagar por suas consequências, e sim, os grupos mais vulneráveis. Uma situação que nos ilustra claramente a injustiça presente no Racismo Ambiental foi o rompimento da barragem próxima à cidade de Brumadinho-MG em 2019, que gerou uma tragédia em duplo sentido: nas 259 vidas que foram ceifadas e 11 que até hoje estão desaparecidas3, e na destruição dos modos de subsistência das comunidades que ali viviam (essa ação representou a eliminação de hábitos alimentares e de toda uma construção cultural que é insubstituível). Enquanto isso, a Vale, empresa responsável pelas más instalações daquela obra, continua sem ter uma cobrança maciça da Justiça e dos grupos da sociedade civil. Diante da parcialidade de alguns com essa situação, faço das palavras de Acosta (2016) minhas:


Não deixa de ser curioso que muitas das pessoas que se opõem a uma nova

ampliação de direitos não tenham pudor algum em aceitar que se concedam

direitos quase humanos a empresas – o que é uma grande aberração. (p.123)


Na falta de comoção pública com a desigualdade de condições entre os povos, nos deparamos com uma comunidade global que hierarquiza os modos de vida de um jeito que é possível se dizer que ela considera algumas vidas menos importantes em relação a outras. Para chegarmos em tal afirmação, basta assistirmos os noticiários e veremos como são tratadas as mortes de membros pertencentes às comunidades periféricas da sociedade capitalista (moradores de favelas, indígenas, ribeirinhos etc) e compararmos com a relevância que ganha a morte de algum empresário ou pessoa bem sucedida dessa mesma sociedade.


Partindo deste cenário, convido Mbembe (2016), que ao citar Foucault (1997), traz ao debate a seguinte afirmação: “Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é “a condição para a aceitabilidade do fazer morrer. ”(p.128)”. Para tentar falar de um modo mais simples: o Estado tem um papel fundamental nessa situação de caos que ocorre em sua sociedade, como o Estado é o elemento que detém o poder, ele tem o direito de dizer aos cidadãos (por meio de suas punições) quais ações são abomináveis e quais são aceitáveis. E quando as punições estatais deixam de exercer sua função com efetividade, faz com que os seres humanos criem entre si um novo sistema ético, baseado no caráter punitivo desse Estado falho.


No caso do Estado brasileiro, é notável que ele não busca interferir em diversas situações que tocam nessa lógica social que aceita o preconceito racial até suas últimas consequências. Essa ausência de ação nos leva para uma série de problemas, dentre elas a naturalização das mortes dos povos marginalizados. Para além da conivência visível de nosso Estado, há também as ampliações das desigualdades, que aparecem na retirada dos poucos direitos dessas comunidades periféricas e na diminuição do aparelho estatal (que por vezes, é quem garante esses poucos direitos).


No momento atual nos encontramos em um cenário apocalíptico de ordem global, no qual, se continuarmos a explorar o meio ambiente do mesmo modo e com as mesmas finalidades, em décadas, teremos uma devastação em massa composta por males como: mais doenças pandêmicas, derretimento de calotas polares, aumento da instabilidade climática (portanto, aumento da intensidade no frio e no calor). Ao mesmo tempo em que, para muitos o apocalipse não é um mistério futuro, e sim uma realidade que já está no presente. Partindo dessas complicações de ordem socioambiental, como podemos revertê-las? Temos alternativas? Se sim, por onde podemos começar?


Já ficou bem evidente que não temos tempo para lamentações, pois não se mover diante desse evento ímpar na história da humanidade, é deixar com que a destruição, em suas diferentes formas, vença. Além disso, é importante ressaltar que não podemos aceitar saídas que tenham como foco a preservação das relações sociais hierárquicas. A construção de uma nova ordem social ecológica só será possível se for baseada em novos valores, valores estes que considerem a importância da soberania dos diferentes povos e que não considerem os elementos da natureza meras mercadorias para a economia do capital. Portanto:


A economia deve submeter-se à ecologia. Por uma razão muito

simples: a Natureza estabelece os limites e alcances da sustentabilidade e a

capacidade de renovação que possuem os sistemas para autorrenovar-se.

Disso dependem as atividades produtivas. Ou seja: se se destrói a Natureza,

destroem-se as bases da própria economia. (ACOSTA, 2016, p.121)

Como uma oposição ao discurso desenvolvimentista, que já degolou culturas, devastou ecossistemas, e por isso, já se demonstrou incondizente com as necessidades do atual momento. Uma ideia que pode ser aderida está nos escritos de Boaventura de Souza Santos (2009), que visando uma reconstrução na relação entre os conhecimentos desenvolvidos pelas diferentes culturas ao longo da história da humanidade, traz o conceito nomeado como ecologia de saberes, que se caracteriza por:

Confronta a monocultura da ciência moderna com uma ecologia de saberes. É

uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da pluralidade de

conhecimentos heterogéneos (sendo um deles a ciência moderna) e em

interacções sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua

autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o conhecimento é

interconhecimento. (SANTOS, 2009, p.44-45)


Este conceito parece perfeitamente conveniente ao atual momento, ao mesmo tempo em que ele possibilita à democratização dos discursos culturais, ele também nos possibilita uma troca cultural muito rica. Essa troca poderá ser um marco de um novo tempo civilizatório, que permitirá à comunidade global a possibilidade de estar com os olhos abertos às necessidades e urgências da Terra. Como um exemplo totalmente oposto à sociedade capitalística, Ailton Krenak (2019) descreve como seu povo constrói uma relação profunda com o meio ambiente, na qual os elementos da natureza são parte integrante da comunidade social:


O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma

pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de que

alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo

que habita um lugar específico, onde fomos gradualmente confinados pelo

governo para podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização

(com toda essa pressão externa). (KRENAK, 2019, p.21)

Por mais difícil que seja uma reversão a este cenário apocalíptico, ainda temos tempo de reação. Mas para uma experiência realmente construtiva, a ecologia de saberes tem que se fazer presente em todas as camadas de nossa sociedade: As escolas devem incluir esses saberes em seus currículos, os movimentos sociais terão de incluir esses povos para realmente representarem a “voz do povo” e os órgãos de justiça terão de auxiliar esses povos no processo de “direito aos seus direitos”.


O engajamento das diferentes instâncias sociais é essencial também para o combate às opressões e às desinformações, que infelizmente se fazem presentes na atual situação cibernética. Através de práticas sociais vivas como essas é que poderemos pensar em uma mudança de valores na qual surgirá a real democracia entre os povos. E além disso, a união se faz necessária pelo fato de que um povo que não reconhece as formas de cuidar da sua própria Terra, não saberá se as multinacionais ou se os projetos políticos aprovados estarão tratando o meio ambiente com o cuidado que merece. Logo, esse povo estará alienado sobre seu direito à cidadania.


notas:


1 - Conceito criado por Stoemer e Crutzen (2000), apud, Viola e Basso (2016).

2 - Doença causada pelo contato direto entre diferentes espécies animais, esta ocorre quando um vírus (que vive harmonicamente em determinadas espécies e ecossistemas) sente a quebra de seu fluxo (geralmente ocorrida quando o animal é forçado a sair do seu habitat ou quando se destrói um ecossistema). E como resposta a essa quebra, o vírus encontra novos corpos nos quais a sua presença é prejudicial, pois não há anticorpos suficientes para um vírus inesperado.

Logo, quando passamos a invadir o habitat de determinadas espécies de modo a exterminar o equilíbrio local, além de ferir outras espécies, estamos ferindo a nós mesmos.

3 - Dados encontrados pelo G1 Minas, na reportagem do dia 25/01/2020.


  • O grupo de pesquisa Laroyê publica textos selecionados, oriundos dos trabalhos das disciplinas ministradas pela Profa. Ellen Souza, na UNIFESP, com a autorização dos discentes. Outras publicações possíveis são as dos membros do Grupo de Pesquisa Laroyê e/ou parceiros. Assim sendo, no momento, o blog/site não está aberto para publicações outras, devido à estrutura atual.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACOSTA, Alberto. O bem viver : uma oportunidade para imaginar outros mundos; tradução de Tadeu Breda. – São Paulo : Autonomia Literária, Elefante, 2016.


HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de gestão integrada em saúde do trabalho e meio ambiente, v. 3, n. 1, p. 01-20, 2008.


KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.


MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios. Tradução de Renata Santini – Rio de Janeiro: UFRJ, n.32, 2016.


SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina SA, 2009. p.21-131


Um ano após tragédia da Vale, dor e luta por justiça unem famílias de 259 mortos e 11 desaparecidos, G1 Minas, 2020. Disponível em : https://g1.globo.com/mg/minas gerais/noticia/2020/01/25/um-ano-apos-tragedia-da-vale-dor-e-luta-por-justica-unem familias-de-259-mortos-e-11-desaparecidos.ghtml. Acesso em: 10 fev. 2021.


VIOLA, Eduardo; BASSO, Larissa. O Sistema Internacional no Antropoceno. Revista Brasileira de Ciências. Sociais, São Paulo, v. 31, n. 92, 2016 .

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