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A PRODUÇÃO DA SUBJETIVIDADE MARGINALIZADA ...

A PRODUÇÃO DA SUBJETIVIDADE MARGINALIZADA DIANTE DO COMPLEXO SOCIAL DAS DIFERENTES MANIFESTAÇÕES DA DESIGUALDADE






Como mulher, fui socializada desde a infância para me simplificar sendo mãe, esposa e dona de casa. Quando me vi Lésbica houve a convergência entre o sexismo somado à homofobia. Quando me vi negra, somou-se a ligação do meu corpo dominado pelo racismo e pela sexualização. Como Mãe Solo me torno alvo de controle de uma sociedade repleta de tabus e preconceitos, alvo de um sistema de exclusão social, em que ocupar o lugar de Mulher, Negra, Lésbica e Mãe Solo, e ainda assim existir e resistir, faz de mim revolução.


Existe um senso comum no que diz respeito à categoria “feminino” em nossa sociedade e de fato, esse imaginário construído socialmente não me cabe por inteiro. Desse modo, ocupar o local que ocupo e, principalmente, falar sobre isso, fomenta com que eu carregue em mim e na potência da minha voz a possibilidade de impulsionar o rompimento da heteronormatividade e revelar a esperança e a intensidade do poder de transformação por meio do meu posicionamento quanto a minha identidade, na medida em que eu entendo que essa identidade se constrói apoiada na dimensão das lutas contra o racismo, o sexismo e o heteronormativo.


Estive por cerca de 20 anos de minha vida, presa no que pode-se chamar de heterossexualidade compulsória, que segundo Judith Butler (2000), faz “parte de uma prática regulatória que produz os corpos que governam". Ou seja, a heterossexualidade compulsória, que aprisionava meu corpo, minha voz e minhas vontades, faz parte de um processo muito maior, um processo de “materialização dos seres” que fundamenta toda a subjetividade de um ser e o reduz ao sexo, sendo a heteronormatividade uma diretriz característica pré determinada, onde o objetivo é o de “materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual”.


Desse modo, desempenhar diariamente o meu lugar de subjetividade, torna o meu corpo um alvo de inquietação constante, já que ele representa ao grupo dominante um ponto de efeito profundo e minucioso de microrrevolução que corresponde às bases que sustentam o sistema dos exemplos de exclusão social do Brasil. Através de instrumentos de controle tão poderosos, esse sistema estabelece que as coisas são como são e que nunca serão diferentes, e essa perspectiva resulta na marginalização e domesticação dos corpos como o meu, em situação de opressão.


Frantz Fanon, em sua obra “Os condenados da terra” (1968), expõe os mecanismos geradores da alienação do sujeito no nosso sistema, e dentre eles, o autor afirma que a violência é um elemento precursor desse sistema de sociedade colonial, estando fortemente presente em todas as suas possíveis expressões. Essa violência caracteriza o inconsciente coletivo dos povos oprimidos, fazendo com que passemos a manifestar fúria e ressentimento. E assim, o medo e o ódio se tornam um integrante comum, inerente aos nossos corpos, tornando simples de assimilar a profundidade que existe entre a violência, a visibilidade e a justiça.


Logo, fazer parte do complexo social das diferentes manifestações da desigualdade, me posiciona como integrante de um jogo perene de dívida com a minha própria existência, fazendo com que a minha subjetividade marginalizada seja capaz de estimular a luta pela liberdade de se apropriar de outros desejos, desejo esse de descolonizar meu corpo e de exprimir outras visões de mundo para meus semelhantes, na medida em que almejo um mundo em que a justiça e a igualdade social sejam externas aos âmbitos de dominação do estado.


Quando Frantz Fanon (1968) discorre sobre a descolonização, ele enfatiza que não existe uma forma dela acontecer amigavelmente, e sim, somente a partir de uma ruptura brutal e radical. Isso porque esse movimento de descolonização não é perceptível por si só, só se percebe na medida em que se entende o curso histórico que o compõe, só se percebe na medida em que se compreende a desigualdade e a violência que se dá a partir da relação de opressão do colono sobre o colonizado.


No livro “Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador”, Albert Memmi (2007), exibe as duas reações do colonizado, nas quais me identifico profundamente. A primeira é a tentativa de se parecer com o colonizador, negando sua essência, na medida em que renuncia costumes e tenta igualar seus traços físicos ao do colonizador, fazendo o possível para se camuflar. Entretanto, Memmi expõe também que, na maioria das vezes, o colonizado acaba por entrar em conflito interno diante da ocorrência da constante negação de si mesmo, fato esse que realmente fez parte da formação da minha identidade. E a partir dessa negação, a segunda reação se exprime, na medida em que o colonizado retoma a consciência de que é crucial negar aquilo que vem do colonizador e não tentar se aproximar dele.


A partir daí fica mais fácil de entender que a autoaceitação e a autoafirmação são as únicas saídas para que o colonizado assuma as rédeas de seu destino por meio de uma revolta completa, ou seja, de uma revolução (MEMMI, 2007). Trago todas essas questões para contextualizar que sei que a minha dor não é individual e que por mais singular que seja a maneira que se apresenta a minha existência, ela me permite notar, de certa forma, a proximidade com as dores dos meus semelhantes, me permite enxergar de onde vem o poder que bate dolorosamente em meu peito e que tenta calar a minha voz diariamente.


Todo esse processo de autoaceitação e autoafirmação por vezes é sim doloroso pois exterioriza pontos obscuros que antes eu não tinha como compreender, mas também, é um processo transformador, na medida em que passo a ter consciência do meu verdadeiro ser, da minha essência, da minha força, dos meus valores e das minhas vontades, aumentando, assim, minha autoconfiança, instrumento esse que me permite fazer escolhas mais autênticas e assertivas diante das tantas situações de opressão que vivencio apenas por ser quem sou.


Sarah é membro do Grupo de Pesquisa Laroyê - Culturas Infantis e Pedagogias Descolonizadoras, cursa o 5º termo do curso de Pedagogia na UNIFESP. Acesse o lattes: http://lattes.cnpq.br/0134272401577771

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: N-1 edições, 2020.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.


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